Meu avô era do tipo que consertava coisas.
Para ele, tudo poderia ter uma sobrevida: chuveiros,
telhados, ventiladores, ferramentas, armários, brinquedos. Principalmente
brinquedos.
Lá em casa a gente chamava ele de Magaiver. Acho que ele
gostava. Eu era muito novo, não fazia ideia de quem era, mas sabia que era um
cara que não precisava de muitas ferramentas para sobreviver.
Tipo o meu vô.
O mais legal é que ele não só consertava coisas, como também
as criava. Era um sujeito engenhoso. Da própria cama, ele controlava quase todo
o quarto: luzes e ventiladores (e, se não me engano, a velha Philco também - o
botão de ligar, não os canais).
Certa vez, ele me fez um helicóptero. Precisou apenas de um
motor de carrinho leve e um pirulito. Tipo o Magaiver.
Mesmo assim, apesar de toda a engenhosidade, toda a
criatividade e toda a capacidade autodidata, ele também tinha seu calcanhar de
Aquiles, chamava-se parede de tijolos.
Ainda me lembro da última tentativa frustrada de erguer uma.
Cheguei do colégio e, como sempre, corri pra ficar na cola
do velho. E ele parecia confiante. À sua frente tudo sendo erguido nos
conformes: tijolo, cimento, tijolo, cimento, bença vô, Deus que te abençoe,
tijolo, pancadinha aqui, pancadinha ali, nivela, limpa o suor da testa, minha
vó traz a água, a gente bebe, tijolo, cimento, tijolo, acerta, cimento,
pancadinha.
Era noite quando ele terminou, mas, mesmo assim, já era
possível enxergar que aquela parede não estava entre das 3 mais perfeitas do
bairro. Na real, não estava entre as 3 mais perfeitas da casa.
Mas não tinha o que se fazer àquela altura, velho ou novo,
casa ou colégio, estávamos exaustos.
Entramos.
Na manhã seguinte, antes do café, corri pra ver a parede.
Ela tinha se curvado de uma forma engraçada, parecia uma árvore centenária, mas
sem a mesma dignidade. Almocei e, antes de ir pro colégio, dei mais uma
checada. Na mesma. Quando voltei do colégio, corri pra vê-la novamente. Ainda
mais encurvada. Ainda mais centenária, ainda menos digna.
Como não sei se fui claro, vale ressaltar mais um exemplo.
Quando seu velho chevette 74 dava algum defeito, ele preparava a marmita pra ir
à oficina, ficava na cola do mecânico o tempo inteiro e, dá próxima vez que o
velho trovão azul desse o mesmo problema, ele mesmo resolveria.
Sentiu o drama?
O velho era uma espécie de gênio!
Na medida do possível, a parede tinha estabilizado. Mesmo
assim, antes e depois do colégio, ou em cada minuto vago entre subir em
árvores, jogar bola e fazer os deveres de casa, eu dava uma conferida na parede
centenária do meu avô. Só pra saber se ainda estava de pé (se é que podemos
considerar aquilo como “estar de pé”).
Até que em uma das visitas pós-aula, havia uma nova parede
de tijolos no lugar da antiga. Pelo que eu entendi, meu avô pagou um
profissional pra terminar o serviço. O medo era de que a parede caísse em cima
do neto, aparentemente fascinado com a tosquice da parede torta.
Quando fiz doze anos, aprendi onde meu avô errava, era a
parada mais idiota do mundo. Tinha a ver com o jeito que ele empilhava os
tijolos, a simetria que ele prezava no processo era exatamente o que deixava a
parede, você sabe, assimétrica.
Infelizmente, não pude correr pra contar.
Assim como o helicóptero de pirulito, aquela época foi doce,
voava entre nuvens de algodão, mas não durou muito.
Meu velho já havia partido.
Nunca vou descobrir o real motivo para o vô não ter superado
sua parede de tijolos, mas sei que toda essa história me fez um obcecado em
localizá-las por aí.
Descobri que todos nós a temos, não sei se por pura
arrogância ou pura distração, nossas paredes de tijolos vão tomando formas
bizarras e nada dignas com a mesma naturalidade e constância com que são
erguidas.
É importante estarmos ligados nisso, paredes separam muito
mais do que protegem. Principalmente quando malfeitas. E o pior, pode ter gente
inocente próximo a elas. Pode ser apenas uma questão de tempo e gravidade para
que sua arrogância ou distração machuquem alguém que você daria a vida para
proteger.
Por isso, fique sempre atento. Paredes de tijolos podem não
durar muito, mas sempre existe a possibilidade de a gente durar menos do que
elas.